Texto de Gabriel SC, edição de Victor Klauck, militantes das Brigadas Populares
De maneira caótica, atirando em civis e largando seus colaboradores à própria sorte, os EUA estão terminando sua retirada de Cabul enquanto o Talibã assume o poder no país. A derrota na mais longa guerra do império estadunidense deixa no Afeganistão um legado de mortes, escombros e tragédias – as passadas e as que virão.
Com a queda do governo fantoche afegão, o Talibã retoma o poder no país, livre para aplicar uma política fundamentalista religiosa altamente opressora, violenta e retrógrada, especialmente contra mulheres e LGBT+. A retirada dos Estados Unidos não significa uma derrota completa, nem o fim das intervenções imperialistas, mas altera o balanço de forças na região.
Para entender melhor a situação, no entanto, é preciso voltar um pouco mais, até a década de 70, quando rebeldes – os Mujahidin, num termo guarda-chuva que abarca dezenas de grupos heterogêneos – eram financiados pelos EUA e trabalhavam para sabotar o país e desestabilizar o governo socialista da República Democrática do Afeganistão. Com a fragilidade cada vez maior do governo, a União Soviética intervem no Afeganistão contra a insurgência – que, por sua vez, passa a receber ajuda ainda maior dos Estados Unidos. Após uma década de uma sangrenta guerra, os soviéticos se retiram em 1988. O governo socialista resiste até 1992 e cai.
A disputa pelo poder segue e, em 1996, o Talibã toma Cabul, consolidando-se no poder. Formado na própria década de 90, com financiamento, treino e ideologia vindos principalmente do Paquistão, o grupo fundamentalista é composto por milhares de mujahidin – muitos dos quais financiados pelos EUA durante o confronto contra forças socialistas. Outras organizações e frentes também se destacam durante a guerra civil afegã. Um dos mais significativos é a Aliança do Norte, frente de diversos grupos que se torna a maior opositora dos fundamentalistas e controlava parcela razoável do país até o início da atual guerra. No entanto, o governo do Afeganistão, naquele momento, pertence ao Talibã, que impõe políticas opressivas ao povo.
Esse é o cenário até 2001, data da invasão liderada da OTAN e liderada pelos EUA – com o Talibã controlando menos território do que hoje. Com o suposto objetivo de buscar os culpados pelos nefastos ataques contra civis em 11 de setembro do mesmo ano – ainda que nenhum dos terroristas fosse afegão, nem o financiamento tivesse partido de lá, e sim da teocracia aliada dos EUA Arábia Saudita – os Estados Unidos derrubam o governo e passam as duas décadas seguintes sem objetivos claros.
O estabelecimento de um governo fantoche estável e autossustentável nos moldes pensados pelos EUA esbarra na total falta de legitimidade de representantes impostos por um invasor. A caçada por Osama Bin Laden, liderança da salafista e terrorista Al-Qaeda, é concluída com dez anos de atraso mas fora do Afeganistão, no vizinho Paquistão. Obama, Trump e Biden prometem a retirada das tropas, mas não há planejamento de como fazer ou do que vem depois.
A falta de estratégia dos EUA culmina no caos visto nestas últimas semanas: um governo fraco negociando sua própria saída, rendições massivas, arsenais bélicos caindo nas mãos do Talibã com pouquíssimo esforço, pânico na população e fugas desordenadas.
Eis o retrato puro do imperialismo estadunidense, que invade um país sem ter planos para o que fazer depois ou como se retirar. Enquanto o povo afegão sofria com blindados, tiros, bombardeios, drones, sequestros e torturas, generais e presidentes batiam cabeça e o complexo industrial militar, empreiteiras e mercenários ganhavam quantias inimagináveis de dinheiro – um programa governamental de transferência de riquezas dos trabalhadores dos EUA para os bilionários.
A corrupção marcou diversas das gestões fantoche, enquanto o tráfico de ópio e heroína atingiu patamares recordes, a partir do cultivo de papoula. Corrupção, tráfico de drogas, operações ilegais, dinheiro sujo, uso de paramilitares e mercenários: tudo dentro do roteiro imperialista que alimenta instabilidades e guerras sem fim.
É evidente que a saída do Afeganistão não significa uma derrota total e completa dos Estados Unidos – afinal, ainda negociam diretamente com o Talibã e estão conectados às suas origens – mas sinaliza uma diminuição da capacidade de influência sobre o país em relação ao governo fantoche que acaba de cair. Abrem-se também maiores espaços para que outros países aumentem suas influências sobre a região.
Além do Paquistão, intrinsecamente ligado ao Talibã por meio do ISI (uma de suas agências de inteligência), Rússia, China e Irã observam cautelosamente o desenrolar dos acontecimentos. No caso dos dois últimos, as preocupações com o conflito são maiores pelo risco de levarem à instabilidade interna, uma vez que possuem fronteiras terrestres. Ambos ofereceram ajuda a OTAN para pensar soluções que não gerassem a queda imediata do governo, mas tiveram suas ofertas recusadas.
Com relação à estabilidade regional, no entanto, é possível que políticas externas pragmáticas prevaleçam, com o Talibã se comprometendo a combater grupos terroristas na região e, em contra partida, a inclusão do Afeganistão em projetos da Iniciativa do Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda, elementos que explicam o recente diálogo entre a China e o grupo afegão.
Para os Estados Unidos, a derrota no Afeganistão também marca um momento de mudanças estratégicas. Depois de mais de uma década focado em conflitos com assassinatos dirigidos, forças de operações especiais e contrainsurgência (COIN, na sigla em inglês), focando pesquisa, equipamento, treinamento e doutrina nesta perspectiva, os EUA viram sua hegemonia começar a ser ameaçada por uma China cada vez mais forte e uma Rússia que voltou a se armar.
Assim, o império volta cada vez mais suas atenções para os conflitos “near peer” (“quase competidores”, outras superpotências) – um eufemismo para aquecer um clima de nova Guerra Fria e aumentar ainda mais seus ridículos gastos militares. Esta mudança de estratégia passa também pela realocação de tropas para conter a China e buscar manter a hegemonia dos EUA no planeta.
Isso não significa, claro, o fim das intervenções imperialistas – inclusive existem dezenas ocorrendo neste exato momento, de diferentes naturezas, incluindo programas de ataques de drones, bombardeios, embargos, assassinatos dirigidos, boicotes, além do financiamento e apoio a golpes.
Para o Afeganistão, o saldo final é de um país destroçado e uma população oprimida, num processo impulsionado pelo imperialismo estadunidense por mais de 4 décadas – mortes em cima de mortes em nome do lucro e do controle. Os EUA vão embora derrotados, mas quem paga a conta é o povo afegão, saindo do jugo da ocupação estrangeira para o fundamentalismo do Talibã.
Não há nada a se comemorar. Cabe apenas a luta contra o imperialismo e demais injustas opressões, em defesa da autodeterminação dos povos e condições dignas de vida.
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