Por Pedro Otoni

Nosso país está submetido a uma profunda ofensiva de forças conservadoras (algumas inclusive de caráter fascista). Como resultado, vemos desmoronar conquistas sociais, garantidas com o esforço de trabalhadores em luta por mais de um século de nossa história. O imperialismo avança no controle dos nossos bens estratégicos; as elites econômicas associadas ao estrangeiro entregam as últimas reservas de soberania nacional a troco de ganhos imediatos. Vemos diante de nossos olhos a mesma estratégia utilizada no México pelos EUA e as elites locais associadas ao estrangeiro: a decomposição da soberania do Estado nacional e das condições de existência digna das grandes maiorias do povo.

A “VIA PASSIVA” DE OPOSIÇÃO AO GOLPISMO

A ofensiva conservadora (de matriz golpista) colocou em xeque a estratégia adotada pelas organizações populares e de esquerda desde a redemocratização do Brasil na década de 1980. As forças que durante as últimas três décadas conduziam a contraposição nos níveis social e político hoje se encontram incapacitadas para exercer a direção organizada das lutas do povo. Seu esgotamento político e a ausência de capacidade recriadora as levam a adotar a mesma estratégia saturada e derrotada com o golpe: baseada no legalismo acrítico, no “eleitoralismo ingênuo” e “negocialismo de baixo perfil”, o que podemos chamar de “via passiva”. Em outras palavras, pretendem executar a tradicional abordagem que passa pelo desenvolvimento de lutas sociais como recurso auxiliar, que junto à negociação com setores conservadores possam resultar, em tese, numa vitória eleitoral e em governo, sob o registro e em defesa da ordem vigente.

DESENVOLVER UMA NOVA ESTRATÉGIA PARA UMA NOVA GUERRA

A situação atual se configura como a derrota estratégica da atual abordagem das esquerdas majoritárias no país. A realidade se moveu; não é possível continuar apostando nos mesmos mecanismos e metodologias de antes. É necessário realizar novas apostas e reinventar, no Brasil, uma estratégia popular e nacional de disputa do poder político e social.

O desenvolvimento de uma estratégia deve constituir a base social que irá sustentá-la. A base social de uma estratégia (ou projeto) não está pronta (disponível na realidade), ela é formada por meio de uma “metanarrativa” (programa, visão, crença) e uma metodologia (linha de massa, mecanismo de organização, formação e luta) que promovam a constituição de um sujeito social novo (novidade). Portanto, no Brasil, não basta mobilizar o sujeito, mas, antes de tudo, é preciso constituí-lo.

Já se tornou clichê indicar como solução o “retorno ao trabalho de base”, sim, mas é insuficiente uma conclusão que não possua uma disposição prática de realização. O “trabalho de base” é apenas o modal de um projeto (hoje inexistente para a maioria das esquerdas) e já que todo trabalho tem suas dimensões intelectual e manual (pensar, organizar e executar), é necessário agir. Porém, atualmente, o que há de abstrato na declaração tem de mecânico na execução. Pensa-se muito pouco (e com escasso compromisso teórico) sobre o papel do trabalho de base e se executa ainda menos do que se pensa.

O trabalho de base não é agitação política, não é mobilização para ato, não é realizar “formações” com a base. Estas são atividades, e não método. De outro modo, é converter o conflito da vida cotidiana em um antagonismo social que constitua um sujeito revolucionário novo. Ou seja, partir das demandas imediatas do povo, dialogar e construir soluções práticas para que ocorra um credenciamento político do projeto e se inaugure uma nova classe de demandas, no nível da disputa do poder. Essa perspectiva tem como cenário de desenvolvimento o local de vida das pessoas, elo mais frágil da estrutura de controle existente, mesmo que este, de  alguma forma, esteja imune aos controles privados e estatais. Os locais de trabalho, aposta principal das esquerdas para a organização do sujeito, são hoje espaços pulverizados e controlados pelo medo, locais nos quais a constituição do sujeito está bloqueada administrativa e ideologicamente pela dinâmica atual das relações de trabalho, cada vez mais opressoras.

O local de moradia é, ainda, um espaço de encontro de aspirações comuns, e é nessa brecha que aparece uma possibilidade de reorganização do projeto popular e nacional. “O espaço é político”, já dizia Henry Lefèvre; a dinâmica de exclusão e inclusão no espaço determina modos de sociabilidade distintos no mesmo corpo social. Atuar no território significa atuar no espaço no qual o conflito se expressa como cotidiano, momento em que a política não aparece como tal (na forma de espetáculo), mas se revela por suas consequências. Uma ação consciente, coletiva e organizada no território pode constituir um sujeito social novo, socialmente antagônico ao bloco dominante, dotado de um comportamento coletivo que pode se transformar em poder material em outros cenários de disputa.

As igrejas, em especial as de corte neopentecostal, perceberam o potencial do trabalho territorial e da comunicação, por isso ocupam os bairros com sedes que hoje determinam a paisagem das periferias. Transformaram o cotidiano (conflitos, angústias, carências de todas as ordens) em combustível para um projeto de poder que tem peso condicionador na vida nacional. Agiram assim porque entenderam que o território e as estruturas de comunicação (rádios, TVs, jornais, revistas) são as chaves para se disputar a hegemonia social.

É necessário aprender com a realidade e tomar uma atitude comprometida em relação a ela. A pura denúncia das mazelas do golpe de nada serve se não for acompanhada de uma ação intencional, planejada, que vise acumular força e criar condições reais de combate em defesa do povo.

COMUNAS: UNIFICAR AS FORÇAS VIVAS DOS TERRITÓRIOS

É nessa perspectiva que criamos as comunas, como unidades territoriais de organização social e política do povo. As comunas são um dispositivo político e físico implantado nos territórios com o objetivo de engajar a comunidade em atividades que elevem seu perfil de organização e seu comportamento político. Assim, o sujeito social se cria por meio do seu protagonismo e de sua identificação com uma narrativa alternativa à dominante (esta pautada no individualismo e na fragmentação das demandas comuns).

As comunas desenvolvem atividades relacionadas à educação popular, organização comunitária, economia popular solidária, cursinhos populares, cultura, acolhimento de demandas do cotidiano, orientação jurídica e muitas outras ações. Essas atividades respondem a demandas imediatas e criam o contexto para o estabelecimento de uma identidade coletiva e de estruturas de afeto e solidariedade que se expressam em engajamento político.

RESISTÊNCIA POPULAR PROLONGADA: VIA ATIVA E POPULAR DE COMBATE  AO GOLPISMO

As comunas são os dispositivos necessários ao desenvolvimento da Resistência Popular Prolongada – RPP no nosso país, considerando a atual configuração do cenário político brasileiro. As soluções espetaculares e “milagrosas” que prometem derrotar o golpismo – pela via eleitoral ou manifestações de ocasião, em um curto período de tempo – parecem contrariar a própria disposição atual das forças entre os atores políticos e econômicos. Precisamente, tal posição ignora o sentido de gravidade de nosso tempo, a profundidade da derrota que o povo brasileiro sofreu e vem sofrendo. Apostar na via rápida de derrota do golpismo é afirmar a ignorância sobre as forças atuais que os setores populares e democráticos acumulam.

A RPP é a proposta estratégica que considera o enfrentamento em um quadro de assimetria de forças em conflito, que é objetivamente o caso brasileiro. Isso significa que o ator com menores recursos deve preservar suas forças acumuladas, evitando ações de alto custo, desgastar o inimigo a partir das suas vulnerabilidades e não no ponto de sua maior força, escolher (sempre que possível) o momento e o terreno mais favorável para o combate, cobrir e acumular força em cenários descobertos pelo oponente, utilizar o tempo como matéria-prima para a ação política. A RPP só pode se materializar se tiver imersa no povo, e o dispositivo disponível para estabelecer essa imersão são as comunas. Fora isso não há nada senão a velha estratégia da “via passiva” (com diferentes acabamentos retóricos), ou o vanguardismo messiânico, testemunhal e mecânico (isolado da classe que declara “representar”), ou mesmo o ativismo underground (autocentrado, incapaz de estabelecer alianças e propor algo dialogado com os diferentes).

Por fim, é necessário combater as ilusões sobre o sentido geral da luta em nosso país. O golpismo não será derrotado por ser injusto e antinacional; ou eles caem pela força ou não caem. É fundamental aprender a regra de ferro da política e ter uma atitude comprometida em relação à mesma: a vitória não é um ato de justiça, mas uma consequência do uso correto e determinado da força.

As comunas são um dispositivo prático de acúmulo de forças e de manifestação da RPP. Não há atalhos!

Comuna ou nada!


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